Em oito anos, segundo levantamento do Ministério Público do Rio Grande do Norte (MPRN), 95% dos casos de feminicídio do Estado foram de mulheres sem medida protetiva ou quaisquer registros de denúncias. Além de emitir um alerta, o dado coloca em evidência a necessidade de fortalecimento na assistência e proteção às mulheres. Neste ano, por meio da 68ª Promotoria de Defesa da Mulher de Natal, o MPRN lançou o projeto Protocolo Girassol. O propósito é auxiliar aquelas que tiveram medidas protetivas descumpridas e garantir que elas não sejam novamente vítimas de violência ou de feminicídio.
No Estado, conforme apontam os dados do MPRN, das 16 medidas protetivas concedidas diariamente às mulheres vítimas de violência doméstica, em média 10% são descumpridas. Em números reais, foram descumpridas 351 medidas protetivas na capital potiguar, de janeiro a setembro de 2023, segundo levantamento da Secretaria Estadual de Segurança Pública e Defesa Social (Sesed). A promotora de Defesa da Mulher MPRN, Érica Canuto, da 68ª Promotoria de Justiça (PmJ) de Natal, esclarece que trata-se de um percentual que precisa receber atenção, uma vez que o descumprimento pode acarretar pensamentos que buscam descredibilizar a lei e principalmente atingir a vítima.
Por conta disso, o Protocolo Girassol acompanha semanalmente as mulheres que passaram pela situação e adverte os homens que descumpriram a medida protetiva. Em alguns casos, fora a advertência, recursos como a tornozeleira eletrônica, botão do pânico e Patrulha Maria da Penha são acionados. “Não é verdade que mulheres morrem com medida protetiva na mão. A medida protetiva realmente protege”, enfatiza.
Ainda, segundo ela, se 95% das mulheres vítimas de feminicídio no Estado não tinham medidas protetivas ou históricos de denúncias, é porque ainda é preciso pensar no fortalecimento de serviços de várias frentes, sejam ações de prevenção, políticas especializadas nos municípios, ou uma prioridade maior na administração pública frente ao problema.
O percentual de feminicídios foi levantado pelo MPRN considerando os casos de 2015, ano de entrada da Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015) em vigor, até 2022. A regulamentação considera feminicídio todos os assassinatos decorrentes da descriminação à condição de mulher, violência doméstica ou familiar contra a vítima. No ano passado, o RN registrou 16 casos deste crime. Natal e Mossoró, Oeste do Estado, registraram três e dois casos, respectivamente. No entanto, 2023 ultrapassa esse dado antes mesmo do ano acabar. Foram 19 mulheres vítimas de feminicídio, de janeiro a setembro. Natal já acumula seis casos.
Nos últimos 12 meses, apenas em Natal, foram concedidas 1.415 medidas protetivas às mulheres vítimas de violência. Os dados são da Plataforma Proteger, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN), e consideram os números dos três juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher na capital. “O que a gente quer é que uma mulher com medida protetiva não morra, que ela não sofra mais nenhum tipo de violência”, ressalta Érica Canuto. Até o momento, segundo ela, pelo menos 90 mulheres já foram atendidas pelo Protocolo Girassol na 68a Promotoria de Defesa da Mulher de Natal.
Além da iniciativa iniciada neste ano, desde 2011, o MPRN trabalha com o Grupo Reflexivo de Homens com o objetivo de debater junto aos homens autores de violência contra a mulher temas como o controle da raiva e agressividade, Lei Maria da Penha e comportamento sexual de risco. O objetivo é que, a partir da mudança de pensamento, os participantes também mudem a própria conduta e parem de agredir a companheira. Ao todo, cada homem participa de dez encontros semanais, sendo cada um com duas horas de duração.
Na ótica de Érica Canuto, trata-se de um projeto significativo, dado seus reflexos na redução da reincidência de agressões contra a mulher. Nesse mesmo caminho, está o projeto Guardiã Maria da Penha, voltado às mulheres que receberam medidas protetivas, que por meio de um caráter educativo busca explicar à vítima sobre o documento e o que ele lhe assegura. Somado a isso, a iniciativa mostra os caminhos a serem seguidos nos casos de descumprimento e esclarece sobre os diferentes tipos de violência.
Para além das políticas específicas, a promotora de Defesa da Mulher lembra que o MPRN é uma ‘porta aberta’ no atendimento às mulheres que buscam conhecer os próprios direitos, solicitar medidas protetivas, informar sobre descumprimentos e outras demandas relacionadas. A partir disso, o Órgão faz o encaminhamento da mulher ao serviço de proteção correspondente às necessidades que ela apresenta, como o Centro de Referência de Assistência Social (Cras), ou realiza um pedido judicial se for o caso. “Então, o Ministério Público atua de maneira integral. Não é apenas na violência, mas nas causas decorrentes dela”, afirma.
RN tem avanço em políticas para mulheres
Se, por um lado, o MPRN trabalha em uma assistência integral às mulheres vítimas de violência e na compreensão sobre seus direitos, por outro, é dever também do Estado permitir que eles sejam assegurados. Na avaliação de Érica Canuto, um avanço importante está no funcionamento da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) 24h na zona Norte de Natal. Isso porque, segundo dados do Atlas da Violência, os momentos nos quais a mulher mais apanha são no período da noite e fins de semana.
A promotora lembra que a violência doméstica é ‘pulverizada’, ou seja, está presente em todo o Estado. Nas palavras dela, trata-se de um problema que requer um debate contínuo e o fortalecimento de políticas preventivas. “Não dá para escolher uma região mais violenta, pois há lugares e situações em que as mulheres não denunciam”, esclarece. Somado a isso, alerta, a violência doméstica caracteriza-se pela repetição e pode ser considerada ‘democrática’ por atingir desde as camadas mais vulneráveis às mulheres mais favorecidas do ponto de vista socioeconômico.
Especialmente na proteção à mulher no interior do Estado, um ponto de destaque está na interiorização da Patrulha Maria da Penha. De acordo com Érica Canuto, o MPRN, por sua vez, também está capacitando equipes das unidades do Cras e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) do interior para fortalecer a assistência às mulheres vítimas de violência doméstica. O projeto acontece por meio do Núcleo de Apoio à Mulher Vítima de Violência Doméstica (NAMVID) e já esteve em 26 municípios, sendo cerca de cinco cidades apenas neste ano.
Apesar disso, vale pontuar que a Deam 24h da zona Norte ainda é a única das 12 delegacias da mulher do Rio Grande do Norte com funcionamento ininterrupto. O coordenador do Centro de Apoio às Promotorias Criminais (Caop-Criminal), Vinícius Lins, reconhece que embora existam alguns avanços na assistência fornecida pelo Estado por meio das unidades, ainda há a necessidade de que estes espaços tenham mais investimentos para estruturação.
A ramificação da rede de proteção se mostra embrionária, ainda mais quando se fala em cidades menores e mais distantes da capital. A delegada de proteção a grupos de vulnerabilidade do RN, Paoulla Maués, pontua, no entanto, que o Estado tem conseguido uma capilaridade maior ao longo do tempo e que isso reflete no aumento de casos registrados. Portanto, mais agressores são investigados e mais mulheres têm a oportunidade de saírem de situações de violência. “A medida que se cria delegacias em mais localidades, há o aumento de restauração de inquérito policial, não tô falando que o aumento de violência”, esclarece.
Dada a escassez de ramificações de políticas de proteção à mulher no interior do Estado, é possível notar algumas personagens que atuam na tentativa de suprir esses espaços. Uma delas é a vice presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Assú, Genilda Coringa, 50, que foi vítima de violência doméstica por cerca de 10 anos, mais da metade do período do seu casamento, que durou 15 anos, e hoje é parte da frente de proteção às vítimas no município do Oeste potiguar.
Residente no Poré, comunidade rural da cidade, Genilda detalha as violências que sofreu ao longo do tempo. Se houvesse uma maneira de dar “check” em tempo real em tudo que passou, certamente marcaria todas as opções da lista de violências existentes. Começou com a violência psicológica e transitou com certa rapidez para a moral, verbal, patrimonial, física, culminando, desta maneira, na violência sexual. “Houve violência física e a violência sexual também porque quando a mulher diz ‘não’ quando ela não quer ter relação e faz para satisfazer a vontade dele, então ela também está passando por uma violência sexual, né?”, declara.
Todos os episódios aconteciam na presença dos filhos, amigos, família ou terceiros. A servidora diz ainda que normalizou ouvir xingamentos o tempo inteiro. De certa forma, ela reflete, aguentou por tanto tempo porque aprendeu que casamento era para a vida toda, independente do que acontecesse nele. Essa é, de fato, uma cultura perpetuada até hoje e que circula por locais com menor acesso à informação. Parte das mulheres são criadas dessa maneira, aprendem a não reclamar, suportar e, acima de tudo, sobreviver.
Em Assu foi inaugurada em novembro passado uma Deam que tem a finalidade de prestar suporte integral às vítimas, no entanto, a unidade ainda não funciona em sua totalidade. Isso significa que, Então a média de delegacia das localidades em que se cria uma delas né de aumento de restauração de inquérito policial não tô falando que o aumento de violência em caso de agressão durante os fins de semana, é necessário que a vítima se desloque para Mossoró, aproximadamente 70 km de distância, onde pode fazer um exame de corpo de delito e registrar um boletim de ocorrência.
Apesar da atuação limitada, houve um aumento expressivo com relação às violências registradas, o que significa que mais mulheres passaram a denunciar seus agressores. De janeiro a setembro de 2023, foram 269 denúncias. Portanto, houve um aumento de mais de 100% frente aos 134 registros do mesmo período do ano anterior, como mostram os dados da Secretaria de Segurança e da Defesa Social do RN (Sesed).
Aproveitando a lacuna de proteção no município, Genilda criou a Associação das Mulheres Rosas do Vale onde promove rodas de conversa e palestras em parceria com a prefeitura através do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e setor de saúde da cidade. O trabalho tem foco nas áreas rurais, pois a intenção é atender as mulheres que, pela dificuldade de acesso e distância com a cidade, passam por violência e não conseguem denunciar.
Com atuação há dois anos na região, Genilda conta que o trabalho é feito em consonância com instituições, como o Ministério Público, o que tem ajudado diversas mulheres a conseguirem medidas protetivas contra seus agressores. “Nossa associação já ajudou várias mulheres a conseguirem medidas protetivas porque temos um bom relacionamento com o Ministério Público e o Judiciário”, comenta. Essa relação é importante justamente para que a proteção à vítima seja ainda mais completa.
A intenção, ela detalha, é fazer com que as mulheres identifiquem cada vez mais cedo a violência para que não escale para cenários piores de agressão física ou até feminicídio. Além disso, mostrar todas as opções disponíveis, como canais de denúncia, bem como alertar a comunidade. Mostrar que as pessoas de fora devem denunciar uma situação de agressão.