
Uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que pode mudar as regras de doação e gerência de sangue no Brasil tem causado polêmica e divisão entre especialistas, comunidade médica e doadores de sangue. Isso porque a PEC pode permitir a comercialização do plasma humano e a entrada da iniciativa privada no mercado.
Interlocutores do setor de doação de sangue apontam ainda que a PEC em discussão abre margem para que doadores recebam compensações financeiras a depender da aprovação do projeto. A “PEC do Plasma” foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado e irá à Plenário para votação em breve. No Rio Grande do Norte, o Hemonorte se posicionou contrário à PEC e apontou que a mudança na lei é um “retrocesso”.
Em nota publicada nesta semana, o Hemonorte Dalton Cunha, responsável por centralizar e distribuir as bolsas de sangue no Estado, disse que a possibilidade de comercialização do plasma humano “fere frontalmente princípios e diretrizes de normas técnicas brasileiras que determinam a doação de sangue e tecidos como ato voluntário, altruísta e não remunerado”. O projeto inicial previa a remuneração para doadores, no entanto, o trecho foi retirado na votação, o que não impede que possa ser recolocado na votação na Câmara e no Senado.
A argumentação de parlamentares para justificar o projeto seria para atender uma demanda do setor de biotecnologia e diminuir a dependência da importação de medicamentos que atendem pacientes hemofílicos e com outras doenças relacionadas à coagulação sanguínea. Atualmente, apenas a Hemobrás, estatal vinculada ao Ministério da Saúde, é quem pesquisa e produz medicamentos hemoderivados, dando prioridades às demandas do Sistema Único de Saúde (SUS).
“Vejo esse projeto com bastante preocupação. Somos totalmente contrários a essa PEC irresponsável do plasma. Falando por mim, sou doador de sangue e hemoderivados há 39 anos e o que me move é o amor pelo próximo, a prática da empatia e a fraternidade. Já fiz 370 doações na minha vida”, argumenta Paulo Neris, presidente da presidente da Associação dos Doadores de Sangue e Medula Óssea do Rio Grande do Norte (Adosan). Paulo Neris lamenta ainda que entidades de doação de sangue não foram ouvidos sobre o projeto.
Instituições públicas têm repudiado às mudanças na legislação. A ministra da Saúde, Nísia Andrade, disse que “o sangue não pode ser comercializado”. A Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) disse que “a comercialização de plasma pode trazer impacto negativo nas doações voluntárias de sangue, pois há estudos que sugerem que quando as doações são remuneradas, as pessoas podem ser menos propensas a doar por motivos altruístas”.
Para o presidente da comissão de Saúde da Ordem dos Advogados do Brasil no RN (OAB-RN), Renato Dumaresq, a medida em discussão no Congresso Nacional é positiva.
“Penso que a grande preocupação dos legisladores é que, com a abertura para o mercado privado, haja uma desestruturação do sistema de captação, armazenamento e processamento dos hemoderivados pelo SUS. Mas, é preciso observar que todos os medicamentos provenientes de hemoderivados são provenientes de importação. Ou seja, nós enviamos nossa produção de plasma para o exterior e laboratórios fazem a produção dos medicamentos para que façamos a importação”, disse.
“É preciso apontar que a atuação comercial será complementar ao SUS e sob a supervisão do Ministério da Saúde. Tudo com o intuito de manutenção do Sistema Público”, acrescenta.
Proposta pode quebrar monopólio, diz setor
Segundo avaliação de representantes do setor privado, a PEC do Plasma pode quebrar o monopólio do segmento no Brasil. Para o diretor da Sociedade Médica da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH), Dante Langhi, a PEC possibilitaria a produção em escala de medicamentos no país, além do desenvolvimento da indústria.
“A albumina é um exemplo, que serve para atender outro grupo de pacientes. A mais relevante é a imunoglobulina, que são anticorpos que nós naturalmente desenvolvemos com o tempo. Quando você colhe plasma, você está colhendo junto esses anticorpos, que acabam virando medicamentos também”, disse.
Para o presidente da Associação Brasileira de Bancos de Sangue (ABBS), Paulo Tadeu Rodrigues de Almeida, o setor privado tem condições de ajudar a fornecer mais plasma para a população em parceria com o Poder Público.
“A nossa Constituinte de 1988 deixou claro que o sangue não pode ser remunerado, e nós concordamos. Depois, surgiram leis infraconstitucionais que diziam que o plasma dos hemocentros pode ser enviado para a Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás), que é a indústria pública do Brasil, mas esqueceu da parte privada. Ou seja, os bancos de sangue privados não têm o que fazer com o seu plasma, têm que jogar no lixo”, explicou o diretor da ABBS.
Outra preocupação levantada por instituições públicas é de que a coleta atualmente passa por restrições e controle de qualidade, e com eventual remuneração, isso poderia ser afetado.
“O Governo Federal é contrário à remuneração, compensação ou comercialização na coleta de sangue ou de plasma, uma vez que isso desestruturaria a política nacional de sangue, referência mundial pela sua excelência e capacidade de atender a todos os brasileiros. Qualquer mudança que afete as doações voluntárias incorre em risco de desabastecimento nas emergências hospitalares e para quem precisa de transfusões regularmente. Inclusive, o caráter voluntário das doações é recomendado pela Organização Mundial da Saúde”, diz nota do Ministério da Saúde.
“Assim, a maior participação da iniciativa privada, que pode advir de uma negociação no texto da PEC 10/2022, deve ocorrer sob regulação do Poder Público e limitada ao transporte, armazenamento e processamento do plasma, tendo em vista o atendimento prioritário às necessidades do SUS. Ao atuarem nas etapas de logística e produção, junto à Hemobrás, as empresas podem contribuir para aumentar a capacidade e promover o desenvolvimento do setor no Brasil, com geração de emprego e renda, sem ferir o interesse público e a autonomia nacional. É fundamental garantir, nesse cenário, a regulação de um mercado que deve estar a serviço da população brasileira e do SUS”, reforçou o MS.
Hemonorte conta com estoque estável
Responsável por coordenar a captação e distribuição de bolsas de sangue no Rio Grande do Norte, o Hemonorte Dalton Cunha atualmente conta com um estoque de 800 bolsas, quantitativo considerado “equilibrado” para a diretoria da unidade.
“Nosso banco de sangue do RN encontra-se num estoque mais confortável. Já vivemos períodos mais críticos. Isso porque precisamos ter 800/1000 bolsas por dia para suprir a demanda”, avalia Ivana Villar, diretora de Hemoterapia do Hemonorte-RN.
Segundo ela, a Secretaria de Estado da Saúde Pública (Sesap) tem investido em ações para ampliar o número de doadores fixos e novos doadores no Estado. Uma dessas ações é a uma van do Hemonorte que leva funcionários de empresas ao hemocentro, por exemplo, além de doações agendadas.
“Temos trabalhado com o setor de captação para conscientizar a população da importância da doação como um ato voluntário e altruísta. O doador que nos ajuda manter os estoques é aquele que vem de forma voluntária e constante ao longo do ano, sem necessidade de direcionar a doação”, aponta.
Atualmente, segundo dados da Associação dos Doadores de Sangue e Medula Óssea do Rio Grande do Norte (Adosan), o Estado conta com um contingente de 36 mil doadores de sangue fixos.
A PEC
A PEC, de relatoria da deputada Daniella Ribeiro (PSD-PB) propõe alteração do trecho da Constituição Federal que veda “todo tipo de comercialização” de “órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante” ou na “coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados”. Se for aprovada, seria aberta uma exceção para o plasma, que poderá ser coletado, processado e comercializado para desenvolvimento de novas tecnologias e de produção de medicamentos hemoderivados.
A proposta ainda determina a preferência de uso do plasma humano para ações voltadas para o Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo a senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB), relatora do projeto, a ideia é atender uma demanda do setor de biotecnologia e diminuir a dependência da importação de medicamentos que atendem pacientes hemofílicos e com outras doenças relacionadas à coagulação sanguínea.