RN REGISTRA 825 CRIANÇAS EM CASAMENTOS “ILEGAIS”

 Foto: Alex Régis

O Rio Grande do Norte registra 825 crianças e adolescentes entre 12 e 14 anos vivendo em uniões conjugais, segundo dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O número coloca o estado na 17ª posição entre as unidades da federação e representa 2,4% dos mais de 34 mil registros de brasileiros nessa faixa etária que declararam viver algum tipo de união (civil, religiosa ou consensual). Especialistas alertam, no entanto, que, por se tratar de menores de até 14 anos, nenhum consentimento é válido legalmente, nem mesmo da família. Logo, é considerado estupro de vulnerável, passível de prisão que varia de 8 a 15 anos.


O IBGE alertou que os números se baseiam nas informações fornecidas pelos próprios moradores e não representam uma comprovação legal das uniões. Segundo o instituto, as respostas podem refletir percepções pessoais e incluir interpretações equivocadas ou erros de preenchimento. Ainda assim, o levantamento reforça o que organismos internacionais apontam há anos: o casamento precoce interrompe processos essenciais do desenvolvimento infantil e afeta sobretudo meninas — elas representam 77% dos casos no país.


Quando considerado o tamanho da população, o cenário potiguar ganha outra dimensão. Com 3,3 milhões de habitantes, o estado apresenta, proporcionalmente, 1 caso para cada 4 mil pessoas. Estados nordestinos mais populosos têm maior volume absoluto, mas, proporcionalmente, Pernambuco (1 caso para cada 4,6 mil habitantes), Ceará (1 para 4,3 mil) e Paraíba (1 para 3,7 mil) também figuram entre os que mais registram uniões precoces. O Rio Grande do Norte mantém proporção semelhante à de Alagoas (1 para 2,5 mil) e Bahia (1 para 5,2 mil).


Para a advogada Geyse Raulino, presidente da Comissão da Mulher da OAB/RN e que atua na área da família, os dados evidenciam um fenômeno social persistente, frequentemente associado à pobreza e à informalidade das relações. “É uma realidade ver adolescentes assumindo responsabilidades adultas muito cedo”, destaca. Contudo, a regra é clara: desde 2019, nenhum casamento com menores de 16 anos é permitido, sob qualquer justificativa. “Casamento antes dos 16 anos é nulo, como se sequer existisse”, afirma Raulino.

Geysse Raulino: “Consentimento da vítima é irrelevante”| Foto: Cedida


Ela reforça que relações envolvendo menores de 14 anos configuram, automaticamente, estupro de vulnerável, independentemente de consentimento ou suposta relação afetiva. “É irrelevante o consentimento da vítima menor de 14 anos”, cita, referindo-se ao entendimento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal.


Além disso, os efeitos da união precoce têm consequências profundas, especialmente para meninas, vítimas em maior quantidade. A advogada lembra que 80% das adolescentes que casam até os 18 anos deixam a escola. A evasão, somada à maternidade precoce, limita o ingresso no mercado de trabalho e aumenta a dependência financeira. “Elas ficam mais suscetíveis à violência e à dependência econômica”, afirma.


As implicações legais atingem também responsáveis e adultos envolvidos, que podem responder civil e criminalmente, além de serem alvo de medidas aplicadas pelo Conselho Tutelar.

“Grave violação de direitos”, avalia presidente

A presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (Comdica) de Natal, Ana Paula Mafra, considera o cenário de menores envolvidos em uniões conjugais preocupante, sobretudo após a promulgação da Lei nº 13.811/2019. “O casamento infantil está proibido em qualquer circunstância. Antes dessa alteração, o ordenamento jurídico previa exceções, como nos casos de gravidez ou para evitar a imposição de pena criminal”, ressalta. Ela explica que, embora o Comdica não tenha recebido denúncias diretamente nesse sentido, toda comunicação do tipo é encaminhada aos órgãos competentes.


Para Mafra, a persistência das uniões precoces revela fatores históricos, sociais e econômicos ainda muito presentes. “A pobreza e a desigualdade social são fatores determinantes”, afirma. Em alguns contextos, famílias enxergam a união precoce como forma de reduzir gastos ou garantir sustento mínimo à adolescente, uma dinâmica que, segundo ela, aprofunda desigualdades e interrompe direitos fundamentais. “O casamento precoce interrompe a infância e impõe responsabilidades e papéis sociais de adultos, viola o princípio da proteção integral e o direito à infância e ao desenvolvimento pleno de crianças e adolescentes, seja do sexo feminino, seja do masculino”, pontua.


A presidente do Comdica destaca que as violações são graves e frequentemente associadas ao crime de estupro de vulnerável. Contudo, a ausência de dados qualificados e de políticas públicas estruturadas também dificulta a prevenção. Mafra avalia que o enfrentamento exige articulação entre educação, saúde, assistência social e sistema de garantias de direitos. “Devemos ter em mente que a articulação intersetorial com as demais políticas públicas (educação, saúde, assistência social, dentre outras) se faz fundamental para o enfrentamento e a prevenção a esta violação de direitos”, frisa a presidente do Comdica.

Casos não chegam ao conhecimento da Justiça

Os dados do Censo do IBGE — que identificou 825 crianças e adolescentes de até 14 anos vivendo em uniões conjugais no Rio Grande do Norte — não chegam à Justiça, que raramente toma conhecimento dessas situações. A constatação é do juiz José Dantas de Paiva, titular da 1ª Vara da Infância e da Juventude de Natal. Para ele, a combinação entre fragilidade social, normalização cultural e consentimento familiar faz com que esses casos se consolidem antes de qualquer intervenção do poder público.


O magistrado reforça que, para a lei, não existe consentimento válido antes dos 14 anos. O consentimento dos pais só é permitido pela lei para casamentos de menores a partir de 16 anos. “É considerada vulnerável e não tem vontade própria no sentido de consentir relacionamento sexual ou qualquer relacionamento nessa idade. Para o agressor, o adulto, é considerado um estupro de vulnerável”, afirma.


Neste caso, o adulto deve responder criminalmente e a responsabilização pode atingir também pais e responsáveis caso tenham permitido a convivência. “Não tem um argumento de defesa que diga que houve consentimento. Se esses pais consentiram, eles responderão também como negligentes do exercício do poder familiar e poderão perder a guarda dessa pessoa”, explica o juiz.


Segundo José Dantas, é raro que uma união envolvendo menores chegue à Vara da Infância enquanto ainda está em curso ou recém-iniciada. A maioria das ocorrências registradas, no entanto, é diferente: casos de violência sexual, estupro ou abuso, situações em que a vítima se opõe claramente à relação. Nessas situações, o magistrado explica que a Vara da Infância utiliza o chamado depoimento especial, garantindo ambiente seguro para crianças e adolescentes relatarem a violência. A partir daí, o caso é encaminhado à rede municipal de proteção, como os CREAS, e o processo criminal segue contra o agressor.


Quando aparecem casos de menores de 14 anos em união conjugal, já envolvem famílias formadas, com filhos e relações estabelecidas. São adolescentes que começaram a conviver em idade ilegal (12, 13 ou 14 anos), mas só chegam ao sistema de Justiça anos depois, já com 17, 18 ou 19 anos. “A relação já está consolidada, muitas vezes com filhos. E agora vai punir um adolescente desse por essa razão, ou você vai dar assistência?”, explica. Nessas situações, o foco passa a ser a proteção da jovem e da criança envolvida, e não a punição retroativa de um adolescente que também participou da relação enquanto menor.


Dantas aponta que o principal obstáculo para enfrentar o problema não é a legislação, considerada por ele adequada, mas a cultura que naturaliza relações precoces. “As pessoas veem casais convivendo e acham normal. Então essa questão cultural eu acredito que é um dos fatores que ainda fazem com que esses crimes não sejam punidos”, afirma. Ele reforça que fatores como pobreza, falta de acesso à escola, dependência econômica e desconhecimento sobre direitos contribuem para que a prática se mantenha invisível aos órgãos públicos.

Tribuna do Norte