
Se antes a voz feminina no futebol era um “sussurro tímido” em meio ao grito das arquibancadas, hoje ela soa firme, clara e inquestionável, no apito que dita as regras do jogo. Por muito tempo, a arbitragem foi um território masculino, um clube fechado onde as mulheres eram vistas como intrusas. Mas como diria João Saldanha, “o futebol é uma caixinha de surpresas” – e a maior delas, nos últimos anos, tem sido a ascensão feminina dentro e fora das quatro linhas.
Em 1941, as mulheres foram proibidas de jogar futebol no Brasil. A volta aos gramados só aconteceu em 1983. De lá para cá, a figura feminina conquistou diversos espaços, principalmente além das quatro linhas, fazendo valer a regra do jogo. Em 2019, o Rio Grande do Norte teve o primeiro jogo do Campeonato Estadual apitado apenas por mulheres: a central Mariana Regina de Paiva Oliveira e as assistentes Edilene Freire da Silva e Luciana da Silva.
Em 2025, a Federação Norte Rio-Grandense de Futebol (FNF) conta com 10 mulheres no quadro de arbitragem, um incremento de 150%. Apesar do aumento, a participação feminina ainda representa apenas 10,86% do quadro geral, que é composto por 92 profissionais que integram a Comissão Estadual de Arbitragem do RN (CEAF-RN).
Duas dessas protagonistas da nova geração da arbitragem feminina são Larissa Almeida, 28 anos, e Silvânia Moura, 27 anos. Com histórias diferentes, mas um mesmo objetivo, elas falam sobre os desafios, as conquistas e o que ainda precisa mudar no cenário do futebol para que o apito das mulheres soe tão alto quanto o dos homens.

Elas trilham o caminho aberto por Maria das Graças, a primeira mulher do RN a ser árbitra. Das Graças se formou na CEAF e entrou em campo como assistente pela primeira vez em 1981. Outra pioneira é Aldeilma Luzia, que iniciou a carreira como árbitra assistente em 1995 e deixou a função em 2015. Atualmente, Luzia é membro da CEAF e também atua como analista de campo pela CBF.
Há relatos de que a primeira mulher a apitar uma partida de futebol foi Celina Guimarães Viana, em Mossoró. No livro “O Futebol da Gente” (1982), há a descrição de que Celina teria sido árbitra em um jogo que ocorreu na praça. Professora e primeira mulher a votar no Brasil, Celina ensinava os garotos a jogar futebol, traduzindo as regras do inglês.
A trajetória de Larissa Almeida dentro do futebol começou antes mesmo de ela se imaginar como árbitra. Ex-atleta, ela percebeu que a arbitragem era um caminho para continuar no esporte, mas sob uma nova perspectiva. “Escolhi entrar na arbitragem depois de ter experiência como jogadora. Quis mudar minha visão do jogo, enxergar tudo de outro ângulo e continuar respirando futebol”, revelou.
O primeiro passo para essa mudança foi o curso de arbitragem realizado pela Federação do seu estado, seguindo os padrões da CBF. Durante seis meses de preparação, Larissa passou por avaliações teóricas e físicas, além de exames médicos que garantiam sua aptidão para atuar. “No ano passado, fiz o curso de arbitragem na Federação do meu estado. Foi um curso com duração de seis meses, seguindo os padrões da CBF. Além da parte teórica, passamos por avaliações físicas, exames médicos e provas. Após a aprovação em todas essas etapas, obtive o diploma e fui incluída na relação anual da arbitragem”, disse.
Mesmo formada e com o diploma em mãos, ela sabe que o trabalho de uma árbitra vai muito além de conhecer as regras do jogo. A pressão e as cobranças são enormes, mas isso nunca a fez recuar. Pelo contrário. “As mulheres já conquistaram um espaço importante na arbitragem, e nosso papel agora é fortalecer essa presença. Estamos aqui para apoiar umas às outras, ampliar essa visibilidade e continuar fazendo um trabalho de qualidade.
Já Silvânia Moura trilhou um caminho diferente. Ao contrário de Larissa, que passou pelo futebol profissional como atleta, ela se apaixonou pela função antes mesmo de se tornar árbitra. “Eu escolhi a arbitragem porque, antes, eu era atleta e sempre tive curiosidade sobre essa área. Já apitava jogos amadores e, quando surgiu a oportunidade de ingressar na arbitragem profissional no ano passado, me inscrevi no curso e segui nesse caminho”, contou.
O interesse cresceu e se transformou em dedicação quando surgiu a oportunidade de fazer o curso profissional. “Passamos por aulas teóricas e práticas, além de exames físicos e médicos para garantir que estávamos aptos a desempenhar a função. Graças a Deus, fui aprovada e hoje estou atuando”, descreveu.
Mas o que mais a surpreendeu não foram as exigências físicas ou técnicas, e sim o preconceito que ainda existe dentro e fora do campo. “Quando eu era atleta, já não era fácil dividir espaço. Nos treinos, alguns meninos olhavam torto e soltavam comentários como ‘não é lugar de mulher’”, revelou.
Mesmo hoje, como árbitra profissional, ela percebe que o olhar desconfiado ainda existe, mas, Silvânia também vê mudanças acontecendo, ainda que lentas. “Acredito que isso tem mudado bastante. Hoje, o espaço para as mulheres na arbitragem e no futebol, em geral, está bem maior. As pessoas estão aceitando e apoiando mais, e isso é muito gratificante”, comentou.
Histórico
Apesar de a arbitragem ter chegado ao Brasil junto com o futebol, por volta dos anos 1894, a primeira mulher a ser reconhecida na função só ocorreu 77 anos depois, em 1971, quando ainda era ilegal a prática feminina no esporte. A pioneira se chama Asaléa de Campos Fornero Medina, ou simplesmente Léa Campos, a primeira árbitra reconhecida mundialmente.
Formada em Educação Física e jornalista esportiva, ela decidiu se tornar árbitra em 1967, fazendo um curso de oito meses na Federação Mineira de Futebol. Mas o sonho de entrar em campo foi brutalmente interrompido pela Confederação Brasileira de Desportos (CBD), que bloqueou seu diploma sem qualquer justificativa plausível.
Na época, o discurso era claro: “futebol não é coisa de mulher”. A legislação brasileira proibia mulheres de praticarem esportes considerados “incompatíveis com a sua natureza”, e a arbitragem foi colocada nesse pacote. Mas Léa não se deu por vencida.
O Brasil vivia a ditadura militar e, entre seus muitos desafios, Léa tam-bém enfrentou perseguição política. Em 2015, em entrevista ao Globo Esporte, revelou que foi levada mais de 15 vezes ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), acusada de subversão simplesmente por insistir no direito de atuar como árbitra.
Seu reconhecimento só veio depois de um pedido pessoal ao General Médici, então presidente do Brasil, para liberar seu diploma.
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Pressionado, Médici enviou uma carta a João Havelange, presidente da CBD, exigindo a liberação do certificado de Léa. Foi assim que, em 1971, ela se tornou oficialmente a primeira árbitra de futebol do mundo, recebendo o cobiçado “Apito de Ouro” da FIFA.